sexta-feira, 21 de setembro de 2012

ANÁLISE DE O CÃO SEM PLUMAS DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO



Em volume intitulado Duas águas, João Cabral de Melo Neto agrupa, na primeira água, os livros Pedra do Sono, O Engenheiro, Psicologia da Composição, O Cão sem Plumas (que aqui nos interessa mais de perto), Uma Faca só Lâmina e Paisagens com Figuras e, na segunda água, Os
Três Mal-Amados, O Rio, Morte e Vida Severina, e - posteriormente incluído - o Auto do Frade. O poeta pernambucano alerta quanto ao porquê dessa divisão em nota no volume de 1956: Duas águas querem corresponder a duas intenções do autor e — decorrentemente — a duas maneiras de apreensão por parte do leitor ou ouvinte: de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aproveitamento temático, quase sempre concentrado, exigem mais do que leitura, releitura; do outro, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos (MELO NETO, apud NUNES, 1974:74).
Ou seja, o escritor aponta para dois tipos de dicção, para duas possibilidades poéticas que se distinguem, na poesia, em função do destinatário e da modalidade de consumo do texto (NUNES, 1974: 74). O escritor comporia os poemas da "primeira água", enfatizando a construção do texto
(daí o sugestivo título Psicologia da Composição), a expressão, com originalidade e individualidade, conforme a práxis moderna. A combinação, quase sempre insólita, de palavras de diferentes campos semânticos (Cão/ Plumas) exige a atenção do leitor, tirando-o do torpor, da alienação, do “deslumbramento” provocado por uma poesia de corte mais tradicional. Neste ponto do nosso Modernismo, a Geração de 1945 pede um leitor averso à evasão, tão cara a árcades, românticos, e simbolistas.
A exemplo disso, no poema O Cão sem Plumas, o rio e o homem se confundem num movimento comum, que fica poeticamente traduzido na imagem da natureza desplumada, sem adornos, sem enfeite. Ao leitor é apresentado e, com o leitor, é construído um Capibaribe do hoje, não o do ontem, tampouco do amanhã. O poema compõe-se de quatro momentos ("Paisagem do Capibaribe", I e II; "Fábula do Capibaribe", III e "Discurso do Capibaribe" IV). A cada passagem, o leitor é instado a refletir sobre o poema, sua matéria e sua linguagem; é importante compreender cada imagem evocada nos versos cabralinos.
"A cidade é passada pelo rio/como uma rua é passada por um cachorro;/uma fruta por uma espada."
As duas primeiras partes do poema, "Paisagem", descrevem o rio e sua relação com a cidade, não por acaso há o uso constante de verbos indicativos de essência/estado; já na estrofe que abre o texto, por exemplo, aparecem as duas composições que percorrerão todo o poema, sintetizando-o: rio/cachorro, rio/espada: o rio tem vida (cão), não a pomposa, embelezada ("Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa"), mas a comum, crua ("Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem"), por isso ele fere (espada). Fere principalmente o leitor acostumado a descrições saudosistas e embevecidas da natureza feitas pelos autores de traço mais romântico.
A proporcionalidade entre os elementos da comparação inicial (cidade/rua, rio/cachorro: um cachorro cruza uma rua, um rio cruza uma cidade) corrobora para o inusitado da última comparação
(cidade/fruta, rio/espada: partir uma fruta com uma espada não é algo comum). O inusitado pertence à esfera da poética modernista de João Cabral de Melo Neto.
Na primeira "Paisagem", o elemento homem ainda não está totalmente integrado à descrição do rio; as indagações fecham essa primeira parte como a dizer que estas seriam respondidas na continuidade do poema: "Por que parecia aquela uma água madura?/ Por que sobre ela, sempre, como que iam pousar moscas?/ Aquele rio saltou alegre em alguma parte?"
A pergunta já quer imprimir uma resposta: aquele rio de água quase parada (velha, gasta) pelo qual não sobrevoam coloridas borboletas, mas desconcertantes moscas, é figura mais de tristeza que de alegria.
A segunda "Paisagem" nos apresenta o elemento humano mais conectado ao rio; nessa parte, a vida do homem, da cidade e do rio se amalgamam:
"Como o rio/ aqueles homens são /como cães sem plumas (...)O rio sabia /daqueles homens sem plumas.(...)Porque é na água do rio /que eles se perdem " Nessa parte do poema, aparece o cotidiano da cidade, a pachorra da vida provinciana, o comércio: elementos que compõem o entorno, o cenário do rio; a descrição, pois, ainda impera, basta que atentemos para o fato de que os verbos empregados, em sua maioria, não denotam ações
modificadoras de objetos (ser, saber, perder-se...)
Na terceira parte do poema, "Fábula", temos aquilo que está explicitado no título: a história do Capibaribe. Aqui há a narração, os fatos, o enredo; os verbos neste ponto denotam ação, no sentido estrito da palavra.
"A cidade é fecundada/ por aquela espada (...)No extremo do rio/ o mar se estendia, (...) O rio teme aquele mar (...)Primeiro,/o mar devolve o rio. (...)Junta-se o rio/ a outros rios/numa laguna, em pântanos/onde, fria, a vida ferve. (...)Juntos,/todos os rios/preparam sua luta/ Depois,/o mar invade o rio."
A "Fábula" apresenta ao leitor elementos que compõem a vida do rio Capibaribe, entre os quais figura como principal personagem o mar (estende-se, põe medo, devolve, invade...). Não há como contar a história do rio sem fazer referência ao mar. Nesse trajeto do rio para o mar, ainda há espaço para falar do homem, elemento caro à poética cabralina.
Na última parte do poema, "Discurso do Capibaribe", o eu-poético está em seu elemento: o discurso é a linguagem, a dicção, a fala ( "Aquele rio/está na memória/como um cão vivo"); homeme rio têm voz, têm algo a dizer de sua história comum, uma história sem plumas, sem ornamentação, porque sobre ela o autor não passa verniz, ao contrário, desmascara, denuncia; esse é, aliás, um outro aspecto da poesia de João Cabral de Melo Neto: o componente social, aqui perfeitamente explícito nos versos:
"Como todo o real/ é espesso/.Aquele rio/é espesso e real.(...)Espesso/como uma maçã é espessa./Como uma maçã é muito mais espessa/se um homem a come/do que se um homem a vê/Como é ainda mais espessa/ se a fome a come./Como é ainda muito mais espessa/se não a pode comer/a fome que a vê."
Nesses versos retornam os elementos já anteriormente elencados para compor a paisagem e a fábula do Capibaribe (a fruta e o homem). O último verso é de uma força poética magistral, na medida que, por intermédio da comparação, estabelece a ponte entre o regional (o rio Capibaribe) e o universal (a impotência do homem frente a fome, o desejo obstado). A universalização do regional é outro ponto de contato entre os autores da geração de 1945.
A caracterização do rio como algo que fere (espada) já apresentada ao leitor na primeira parte do poema, "Paisagem", reaparece no "Discurso": "é agudo.(...) O que vive fere." O "Discurso" irá agrupar todos os elementos presentes nas três primeiras partes do poema (Paisagem e Fábula), afinal é pela via da linguagem que o homem descreve e narra, isto é, o autor deixa para a última parte do poema a condensação do que seja esse cão sem plumas, esse rio sem fantasia, esse homem sem romantismo.

Marcelino Cutrim (Blog Pan y vino)

REFERÊNCIAS
NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Petrópolis, Vozes, 1974.
PINTO, Maria Isaura Rodrigues. Rio/homem: Cursos e discursos na poesia de João Cabral

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